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Quando o risco de dependência é maior

Fumar e beber, hábitos que se realimentam: combinação faz a dependência ocorrer na metade do tempo do que apenas fumar ou beber isoladamente

É uma combinação de risco, particularmente nas situações sociais: o fumo estimula a tomar uma bebida e a bebida leva a acender mais um cigarro, um e outro realimentando-se num círculo vicioso. Para um adolescente, os riscos são ainda maiores. E os especialistas são enfáticos ao
afirmar que tanto cigarro quanto álcool são péssimos para a saúde adolescente. Pode-se até imaginar que tudo isso não passa de exagero, mas o médico Alex Christian Manhães, professor do Departamento de Ciências Fisiológicas do Instituto de Biologia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), não deixa margem a dúvidas: “Álcool e fumo agem sobre o cérebro de forma agressiva, em tempos diferentes. A questão toda é que, naqueles que ainda não têm o sistema nervoso central inteiramente formado, como acontece com os adolescentes, a exposição à bebida
sempre terá consequências mais sérias e maior será a probabilidade de que essas consequências se tornem permanentes. O corpo caloso – co-
missura que liga os dois hemisférios cerebrais, necessária para a correta interpretação tanto de informações vindas dos sentidos, como visão e
tato, quanto as informações mentais – é uma das estruturas que mais tardiamente amadurecem no organismo humano, o que só acontece
lá pelos 25 anos. “Mesmo o lobo frontal, aquele responsável por avaliar riscos e tomar decisões, tem amadurecimento tardio”, afirma o

pesquisador.
Ele também deixa bem claro que estamos falando aqui de amadurecimento de estruturas físicas e não daquele que resulta das experiências vividas. “É claro que tudo vai depender da intensidade e da frequência da exposição à bebida, assim como das características físicas individuais. Mas é preciso saber que o álcool altera o funcionamento dos circuitos ligados à percepção do prazer, que são as raízes da dependência. Em um cérebro ainda não completamente formado, isso fica enormemente potencializado”, explica Manhães, que é Jovem Cientista do Nosso Estado e integrante do grupo de pesquisa composto pelos professores Claudio Carneiro Filgueiras e Yael de Abreu Villaça, ambos da UERJ e Cientistas
do Nosso Estado, da FAPERJ. O grupo divide o mesmo laboratório na universidade. “Trabalhamos com dependência química desde que a
professora Yael voltou, em 2004, de seu pós-doutorado, na Duke University, Carolina do Norte, Costa Leste dos Estados Unidos. Foi ela quem implantou a linha de dependência com nicotina e álcool no laboratório”, conta o pesquisador.
Como explica Manhães, a consequência é que a dependência à bebida, que em um adulto formado acontece em cerca de dez anos de consumo regular, no jovem pode se dar em menos da metade desse tempo. “Também é preciso considerar que, como o dependente vai aumentando a dose ao longo dos anos para obter os mesmos níveis de prazer, no adolescente esse processo se dá de forma bem mais acelerada e tende a ter efeitos mais duradouros”, diz o pesquisador. Ele explica que isso acontece porque, independente das variações de características individuais, a adolescência é um estágio de vida em que o cérebro é ainda muito plástico, fisicamente suscetível a influências externas. “Nesse processo, mesmo um porre de fim de semana poderá ter consequências a longo prazo”, alerta.
No caso do cigarro, a nicotina – principal substância psicoativa presente na fumaça – age agudamente sobre os neurônios que usam a ace-tilcolina como neurotransmissor, ativando os chamados receptores nicotínicos, fortemente associados à dependência. De acordo com a fre-
quência e com o grau de exposição, como explica o médico, o sistema colinérgico vai se adaptando, o que significa ter sua função progressi-

vamente reduzida nas situações em que a nicotina não está presente. Ou seja, será preciso fumar mais para se obter os níveis habituais de prazer.
“No adolescente, mesmo com o uso eventual, esses efeitos tendem a ser permanentes”, afirma Manhães. E isso é apenas o que acontece no
cérebro. “Há que se somar as conhecidas consequências em outros sistemas, como o respiratório e o cardiovascular”, acrescenta.
Outro ponto importante a ser considerado é que mais de 90% dos fumantes iniciam o hábito durante a adolescência. “Desse total, ¾ se tornarão fumantes diários ao atingir a idade adulta. Além disso, em comparação com os adultos, os adolescentes têm maior dificuldade em abandonar o vício e apresentam sintomas de dependência mais rapidamente, com apenas poucos dias ou semanas de uso intermitente”, informa.

O mais preocupante vem quando bebida e cigarro estão associados, como, por sinal, costuma ocorrer frequentemente. “A prevalência do consumo de álcool em adolescentes fumantes é dez vezes maior do que em adolescentes que nunca fumaram. Da mesma forma como a ocorrência de fumantes entre adolescentes que bebem é cinco vezes maior quando comparada a adolescentes que não beberam nos últimos 30 dias. O fato de que o consumo associado de cigarro e bebida entre jovens ser maior nos finais de semana torna claro o quanto as relações sociais contribuem
de forma significativa para esse coabuso”, aponta.
Segundo Manhães, estudos recentes mostraram que a iniciação precoce no consumo de cigarros e de bebidas alcoólicas prenuncia fortemente
a dependência química ao longo do tempo. “Metade dos jovens fumantes deseja parar de fumar, mas não obtém sucesso. Infelizmente, também vimos constatando que a prevalência da dependência do álcool entre jovens têm aumentado”, fala.
Ele chama atenção para os resultados dessa associação. “O consumo de nicotina e de álcool nessa fase da vida aumenta o risco de desenvolvi-
mento de transtornos relacionados ao uso dessas drogas, com consequências funcionais ainda durante a juventude, entre elas, alterações

cognitivas, como as associadas à memória e ao aprendizado”, diz o pesquisador, apontando para doenças afetivas e para a própria dependência.
A dependência múltipla também é bem mais difícil de tratar. Uma das dificuldades é que a substância para tratamento de uma droga pode ampliar o risco para outra. “É sempre uma interação arriscada e um tratamento complicado de administrar”, explica Manhães. Se no adulto, o tratamento dá as respostas esperadas, no jovem, as mesmas substâncias podem ter efeitos inesperados. “Por isso adotamos doses menores. O processo é mais lento, mas os resultados têm sido interessantes”, resume.
O pesquisador lembra que a dependência química é um assunto tão relevante, não só do ponto de vista de saúde, mas também socioeconômico, e que centenas de grupos de pesquisadores em todo o mundo se esforçam em entender o problema.
“O foco principal da minha linha de pesquisa, aprovado no programa Jovem Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ, é o do tratamento. Há
muitos anos existem tratamentos aceitos para a dependência química, tanto para a nicotina quanto para o álcool. O problema é que eles foram aprovados para adultos”, informa. “Pouquíssimo se sabe sobre a segurança e o efeito que terão em adolescentes, que ainda estão em uma fase importante do seu desenvolvimento e de maturação do sistema nervoso central. Assim, usamos duas drogas já aprovadas em adultos para avaliar seus efeitos comportamentais, neuroquímicos e estruturais, de curto e longo prazo, no cérebro adolescente de modelos experimentais”, diz.

Manhães lembra que, “por questões éticas”, esse tipo de estudo não pode ser feito em humanos, uma vez que envolve exposição a drogas de abuso e fármacos psicoativos em contexto experimental, com o objetivo de entender a neurobiologia básica dos processos envolvidos com o estabelecimento da dependência e do seu tratamento. “Os dados que obtemos com os modelos experimentais são usados na tentativa de entender o que ocorre em humanos. Essa extrapolação é feita com muita cautela, mas a observação de efeitos adversos em modelos experimentais pode levar à adoção de protocolos extremamente controlados de tratamento em adolescentes humanos, ou até mesmo a proibição do uso de drogas nesta faixa etária”, relata. De acordo com o pesquisador, essa parte do projeto, envolvendo especificamente o tratamento, é conduzida  integralmente na UERJ, embora conte com colaborações, no projeto global, de Tânia Marcourakis, da Universidade de São Paulo (USP), Regina Kubrusly, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Alexandre Medina, da University of Maryland School of Medicine, dos Estados Unidos.
Fonte: Vilma Homero / Revista  Rio Pesquisa – FAPERJ. Disponível em: <http://www.faperj.br/downloads/saude.pdf>